quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Fusca; uma invenção de Ferdinand Porsche, de Josef Ganz, de Hanz Ledwinka ou de Adolf Hitler?


Questionamentos quanto a autenticidade do projeto e soluções construtivas do Fusca vêm de longa data, entretanto o recente lançamento do livro de Paul Schilperoord, A Verdadeira História do Fusca, botou muita lenha na fogueira. Como não podia deixar de ser, teve muita repercussão na imprensa e acirrou muito os ânimos de fãs e adversários. Foi esse levante que motivou este post.

Praticamente não há dúvidas quanto ao Fusca ser o carro mais popular de toda a história do automóvel. Foram mais de 21 milhões de veículos produzidos desde o início da sua produção comercial, em 1947, até o final de sua produção em 2003. Um começo de muitas incertezas e de dificuldades e uma trajetória de muito sucesso e reconhecimento. Foi vendido maciçamente em pelo menos 136 países e seus conceitos mecânicos foram largamente copiados no auge de seu sucesso. Ainda hoje atrai e agrega muitos fãs em todo o mundo.

Sua história é recheada de divergências entre os historiadores e fomenta muitas discussões entre seus fãs e questionadores. Inúmeros livros são lançados anualmente graças ao interesse mantido pela legião de  entusiastas. Algumas dessas obras questionam a originalidade e até a autoria da criação do carro por Porsche. Exemplo é o recente livro de Paul Schilperoord com o título da tradução em português de "A Verdadeira História do Fusca - como Hitler se apropriou da invenção de um gênio judeu" que afirma categoricamente que o criador do Volkswagen, nosso Fusca, foi o judeu Josef Ganz. A polêmica trazida pela afirmação do livro reacendeu a os questionamentos quanto a autenticidade do projeto do Fusca e ganhou repercussão imediata em diversos canais. A chamada mais comum para as postagens era:  "Livro revela como Hitler roubou projeto do Fusca de engenheiro judeu".

Em outros livros a originalidade do projeto de Porsche é questionada ao afirmar que o professor copiou muitas soluções do T-97, projetado por Ledwinka para a Tatra, empresa que inclusive foi indenizada pela Volkswagen, , em 12 de agosto de1965, a partir de um acordo que encerrou uma ação milionária que movia contra Volkswagen por conta de uso indevido de uma patente no lendário carro popular.

Também há fontes que afirmam que Hitler é que teria concebido o Fusca ao definir todos os requisitos que deveriam ser atendidos na concepção do seu Carro Popular e Porsche, como bom engenheiro que era, apenas sintetizou essas ideias, dando-lhes corpo e forma.

O assunto dá pano para manga, mas, após ler um novo livro, que me trouxe muitas informações e também muitas dúvidas sobre o assunto, resolvi escrever este post. Certamente um dos mais opinativos e arriscados entre os que me atrevi a escrever aqui. Este sentimento se deve a minha percepção de que as mais fortes polêmicas sobra a história do Volkswagen se concentram no peso das opiniões e julgamento, tanto de escritores como de entusiastas, e não nos registros dos fatos. Esses, como em toda história, tem um certo grau de incerteza, obscuridade e fantasia, mas nada tão alarmante. Acirradas são as discussões em defesa dos méritos e títulos nessa história, algo profundamente subjetivo. As falácias estão nas conclusões. É quase como entrar numa briga de torcidas de futebol ou de eleitores fanáticos. Mas, vamos lá...

PANORAMA NA DÉCADA DE 1930 - OPORTUNO PARA O SURGIMENTO DE UM VOLKSWAGEN
Como afirma Abbott Payson Usher em "Uma História das Invenções Mecânicas", para o surgimento de um grande invento ou mudança social o palco há de estar montado. Aconteceu na época das grandes invenções, com a revolução industrial, com as grandes navegações, com o fordismo.e muitos outros enlaces da historia das civilizações.

Com o Volkswagen não foi diferente, foi concebido para preencher uma lacuna existente, atender um anseio de uma grande parte da população alemã. Havia um emaranhado de fatos e situações que tornavam isso propício e desejado. O momento era oportuno, ou seja o palco, estava montado.

Nos anos trinta a economia mundial estava sob impacto do Crash da Bolsa de Nova York no final da década anterior. A Alemanha estava mergulhada na crise proveniente da derrota na primeira grande guerra, população empobrecida e castigada por uma inflação galopante. A deficiência  de transporte era imensa. Existiam bons carros, mas para poucos favorecidos. Se produziam mais motos que carros e boa parcela dos carros produzidos não eram muito mais que motos, utilizando partes essenciais dessas tais como motores e rodas, alguns eram triciclos.Em geral, esses carros de menor preço, destinados a classe média, eram lentos e mal construídos representando um péssimo investimento, ofereciam o mínimo em matéria de conforto, desempenho,  segurança e confiabilidade. Ainda assim, proliferavam nos quatro cantos do país, pelo menos em número de modelos. A maioria da população andava a pé, de bicicleta, bonde ou trem. A moto representava o transporte individual mais acessível, mas além das limitações como transporte familiar ofereciam sérios riscos de acidente devido a qualidade das estradas, em sua maioria de terra, aliadas as interferências climáticas como chuva e neve.

Na América, Ford já havia dado o exemplo de que um carro barato não tinha necessariamente de ser um produto tosco e deficiente. O Ford modelo T  havia motorizado a América com mais de 15 milhões de unidades produzidas. Mudou o modo de viver da América, gerou empregos fortaleceu e transformou profundamente a economia americana. Seu sucesso era decorrente de ser bem construído, eficiente, durável e muito barato,   a ponto dos mesmos operários que produziam os carros serem também parcela significativa de seus compradores.
Hitler no salão do automóvel de 1934, em Berlim, citou que a média de carros nos Estados Unidos já era de um para cada seis habitantes ao passo que na Alemanha a mesma média era de um para cem. Sua intenção em fortalecer a economia através da popularização do automóvel já havia sido proclamada no ano anterior. Abolição de impostos, ampliação da malha viária através da construção das bem sucedidas Autobahn,  iniciadas no governo que o precedeu, eram promessas que mostravam sua disposição para o intento.

O sucesso do Ford T era um caminho a ser seguido. O anseio por um carro popular na Alemanha não era só daqueles que queriam os benefícios de um transporte individual, mas também dos que queriam geração de empregos e fortalecimento da economia. da nação como um todo.

UM POUCO DE CADA UM DOS RECLAMANTES AO TÍTULO DE INVENTOR DO VOLKSWAGEN
Josef  Ganz e seu Volkswagen suíço, última esperança de ver um projeto seu concretizado na produção em série.
Josef Ganz - Ainda que não fosse totalmente desconhecido, pouco se falava neste engenheiro judeu na história do Volkswagen até Paul Schilperoord resolver resgatar sua influência na concepção do que viria a ser o carro popular da Alemanha. O trabalho obstinado de Paul resultou no livro de título polêmico que tem atraído bastante atenção e influenciado algumas obras sobre a história do Volkswagen 

Ganz nasceu no ano de 1898 em Budapest, no tempo pertencente ao império Austro-húngaro. Desde jovem se mostrou atraído pela tecnologia e cedo revelou-se um inventor criativo. Segundo o livro de Paul, aos nove anos Ganz registrou sua primeira patente - mecanismo de segurança para bondes largamente adotado. Ganz mudou-se com a família para a Alemanha em 1916, país onde já havia morado por três anos, entre os dez e doze anos. As atividades de seu pai, Hugo Ganz, de jornalista, escritor e diplomata fez com que a família se mudasse diversas vezes entre cidades do império Austro-húngaro e a aliada Alemanha.

Após conclusão do ensino secundário, Ganz voltou sozinho para Viena com objetivo de estudar Engenharia mecânica. Seu curso foi interrompido pela primeira grande guerra a qual serviu como voluntário na Marinha Imperial Alemã. Ferido gravemente na frente de batalha, Josef Ganz após recuperar-se dos graves ferimentos teve a oportunidade de trabalhar como técnico de engenharia de aviões ao lado de um dos pioneiros no estudo de aerodinâmica, o Dr. Michael Max Munk. Algo que certamente viria influenciar sua fértil imaginação na elaboração do conceito que ele defenderia com unhas e dentes do que deveria ser um  carro popular da Alemanha.

Depois de algumas interrupções involuntárias Ganz concluiu o curso de engenharia mecânica em 1927 na cidade alemã de Darmstad para onde havia se mudado em 1921. Foram anos difíceis, havia perdido o pai e a mãe nesse período. Ainda assim Ganz conseguiu desenvolver muitas de suas ideias, conseguindo registrar pelo menos uma patente.

Mesmo antes  de concluir o curso, Ganz passou a escrever artigos defendendo em pormenores a criação de um carro leve com os quais obteve boa repercussão. Sua intenção era desenvolver um protótipo, mas suas condições financeiras não permitiam, aceitou a sugestão de um amigo para descrever suas ideias na forma de artigos. Seus artigos foram tão bem recebidos que logo foi convidado para ser redator-chefe na revista Klein-Motor-Sport, onde iniciou seu trabalho em janeiro de 1928. O impacto foi tão bom que logo que sugeriu  a mudança do nome da revista para Motor-Kritik, mais adequado a sua linha editorial, a mudança foi aceita de imediato pelos proprietários, graças ao sucesso trazido por Ganz à revista.

 Ganz soube utilizar sua "plataforma" para influenciar os fabricantes com a disseminação de suas ideias para a concepção de um carro popular. Para Ganz o carro popular de que a Alemanha precisava não passava pelo que até então os fabricantes vinham fazendo. Os carros pequenos, mais acessíveis, eram para ele uma miniaturização de carros maiores resultando em poucas qualidades e preço relativamente alto.

A idéia de Josef Ganz é que o carro popular deveria ser um veículo leve,  pequeno, aerodinâmico, com tração e motor traseiros, suspensão independente com semieixos oscilantes nas rodas motrizes, chassi com tubo central e centro de gravidade baixo. Ganz afirmava que um carro construído conforme sua receita teria desempenho e estabilidade satisfatórios, ao contrário dos carros pequenos da época. Ganz defendia ainda que o preço seria equivalente a uma boa motocicleta, algo em torno de 1.000 Marcos. Suas ideias veiculadas pela Motor-Kritik ganharam muitos defensores e aguçou o anseio daqueles que sonhavam com a possibilidade de ter seu transporte individual.

Quase todas as soluções apregoadas por Ganz foram utilizadas no projeto do Volkswagen de Porsche. Mas, individualmente esses conceitos eram conhecidos e já haviam sido aplicados, Ganz havia tomado conhecimento desses de perto, inicialmente nos salões de automóveis e depois durante testes para a Motor-Kritik. O chassi com tubo central havia sido patenteado, há pelo menos duas décadas, por George Klingenberg. Os semieixos oscilantes, patenteados em 1903, eram criação de Edmund Rumpler que os aplicou ao seu TopfenWagen juntamente com os conceitos de motor traseiro e carroceria aerodinâmica. Ganz havia conhecido a criação de Rumpler no Salão do Automóvel em Berlin no ano de 1921, com o qual ficou muito impressionado.

Apesar de haver se especializado em automóveis durante o curso de engenharia, Ganz enquanto viveu na Europa não teve oportunidade de trabalhar em nenhuma fábrica. Mas, ele soube aproveitar seu poder de influência no meio automobilístico, foi contratado como consultor técnico no desenvolvimento de novos modelos de várias marcas entre elas  a Adler, a Daimler-benz e a BMW. Um contrassenso pelo qual Ganz foi bastante criticado por aqueles que viam na dupla atividade uma grande  falta de ética. Com a perseguição aos judeus isso foi utilizado para incriminá-lo acusando-o de extorsão contra a indústria automobilística alemã.
Chassi do Standard Superior concebido por Josef Ganz antecipava os princípios  básicos construtivos  que seriam utilizados no Volkswagen de Porsche financiado por Hitler - Tendência tecnológica ou usurpação?

Quase todo o trabalho de Ganz foi no mundo das ideias, era um crítico teórico. Nunca chegou a desenvolver algum projeto de automóvel inteiramente, o máximo que conseguiu foram alguns protótipos com suporte de fabricantes. A construção do primeiro ele concretizou, em 1930, na Ardie uma fabricante de motocicletas que intencionava passar a produzir um carro pequeno. O carrinho recebeu o nome de Ardie-Ganz e ainda bastante tosco  ganhou bastante espaço na revista dirigida por Ganz, era sua autoglorificação. A Ardie desistiu do negócio, segundo o livro de  Paul Schilperoord em parte devido a pressão da RDA - Reichsverband der Automobilindrustrie, associação dos fabricantes de veículos automotores. Fabricantes tradicionais estavam interessados em produzir veículos pequenos.

O segundo protótipo ele concluiu logo depois, no ano seguinte, mas em parceria com um fabricante de automóveis, a Adler, batizou sua criação de Maikäfer. Era um melhoria do primeiro, ambos eram carros de dois lugares com motor de dois-tempos refrigerados a ar. Mas, os conceitos de Ganz só entrariam em linha de produção com outra fabricante de motocicletas, a Standard Fahrzeugfabrik, que firmou acordo com o engenheiro judeu e desenvolveu o produto, em 1933 lançou o "Standard Superior", enquanto mantinha Josef Ganz como consultor técnico. O Superior era maior que o Maikäfer, tinha carroceria fechada aerodinâmica, inicialmente com dois e depois com a opção de quatro lugares, as demais características gerais obedeciam as recomendações de Ganz. O nome "Volkswagen", também sugerido por Ganz para a classe de veículos de entrada idealizados por ele, algo como "carro do povo", foi pela primeira vez utilizado em um veículo alemão. O engenheiro redator festejou muito, mas não deixou de criticar alguns pontos dos quais discordava do produto final, claro utilizando a Motor-Kritik. Posteriormente Hitler proibiu o uso oficial do nome Volkswagen, havia reservado para o seu carro popular, ainda em desenvolvimento.
Standard Superior 1934 - O Fusca de Ganz produzido em série e proibido por Hitler de utilizar o nome Volkswagen
 O Superior teve vida curta, de 1933 a 1935, o livro de Paul afirma que o carro era bem aceito, mas, mesmo com o sucesso do carro, uma acusação de violação de patente contra Ganz levada ao tribunal pela Tatra, levou ao proprietário da Standard suspender sua produção por recear pesadas perdas por indenização caso a Tatra saísse vencedora. Certamente foi um forte golpe para Ganz, mas não foi o único desde o ano anterior, 1934, ele estava na Suíça, a perseguição aos judeus havia se tornado preocupante e Ganz havia feito alguns inimigos que se tornaram perigosos, corria risco de vida caso voltasse a Alemanha, jamais retornaria. Na Suíça desenvolveu novos protótipos similares ao Maikäfer para servir de base ao desenvolvimento de um Volkswagen suíço, que nunca chegou a linha de produção.  Em 1950 foi obrigado a deixar o país sob acusação de ser um "agente secreto comunista". Passou alguns meses na França e em 1951 mudou-se para Austrália onde veio a falecer em 1967. Seus últimos dias foram marcados pela pobreza, esquecimento, e saúde fragilizada. Ao testemunhar o sucesso do Volkswagen de Hitler, Ganz se queixava em carta de não haver recebido nenhum reconhecimento pela sua participação na definição das bases do projeto, do nome oficial adotado - "Volkswagen" - e até mesmo no apelido de Maikäfer adotado na Alemanha.

Surpreendentemente,  o Maikäfer sobrevive em perfeito estado de funcionamento.  Foi restaurado em 1990 por MaMaybach-coletor Graff Michael Wolff Metternich e faz parte do acervo de um museu na Alemanha.
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Hanz Ledwinka -  Engenheiro austríaco nascido em 1878, ainda jovem trabalhou para a Schustala & Company, na qualidade de mecânico. A Schustala, fabricava vagões e outros veículos de carga e passageiros, posteriormente o nome da empresa foi mudado para Nesselsdorfer-Wagenbau. Como evolução quase natural de suas atividades a Wagenbau passou a fabricar veículos.  A empresa passaria por uma nova mudança de razão social desta vez para Tatra. Ledwinka também evoluiu de profissão, concluiu engenharia mecânica em Viena, continuou trabalhando para a empresa onde iniciou sua vida profissional. Ledwinka alcançaria notoriedade tanto como engenheiro como design. Entre 1921 e 1937 foi engenheiro chefe da Tatra. Trabalhou diretamente na concepção de diversos modelos. Seus carros eram bastante apreciados, Hitler era um dos admiradores dos carros da Tatra.

As soluções dos modelos de Ledwinka, segundo diversos autores, influenciaram muito o desenvolvimento do Volkswagen de Porsche, algo que se pode constatar facilmente examinando-se as característica e imagens desses veículos.  No período que Ledwinka permaneceu como engenheiro, quase todos os carros da casa austríaca possuíam chassi tubular central, motores boxer refrigerados a ar, suspensão independente com semieixos oscilantes e carroceria aerodinâmica na forma de besouro. Haviam variações como o Tatra 11 - que tinha motor dianteiro, mas q conservando a configuração boxer, refrigeração a ar, tração traseira e semieixos oscilantes -  e do Tatra T-77, bem maior que os outros que fugia da configuração padrão apenas  por ser empurrado por um motor V8 também refrigerado a ar.

Vários autores mencionam a semelhança entre os protótipos de Porsche e o Tatra T-97 e o fato de que  quando a Tatra tentou interpelar Porsche pela utilização indevida de soluções patenteadas pelo fabricante tchecoslováquio Hitler estancou qualquer ação nesse sentido pelo uso da força, após anexar a Áustria invadiu a Tchecolosváquia subjugando a outrora nação aliada. Só após a Segunda Grande Guerra a contenda foi retomada nos tribunais resultando no acordo citado anteriormente nesse post. Também existem afirmações de que Porsche haveria admitido ter conhecido de perto e até examinado o projeto de Ledwinca. Algo bastante provável já que o desenvolvimento do T-97 e do Fusca se deram quase que simultaneamente e ao que consta os dois engenheiros mantinham relacionamento amigável. Por outro lado, Josef Ganz afirmava que Ledwinka era um fiel dísciplo de sua tese, ou seja havia seguido os conceitos mecânicos que Ganz defendia publicamente na  Motor-Kritik para o "carro do povo".


Após o final da guerra Ledwinca foi preso sob acusação de ter colaborado com as forças  ocupação, após cinco anos preso mudou-se para a   Alemanha, afastando-se definitivamente da Tatra. Não recebeu nenhum benefício pelas indenizações motivadas pela utilização de suas ideias, morreu em Munique no ano de 1967.

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VW30 - série de 30 protótipos produzidos, em 1937,  para testes de longa duração
Ferdinand Porsche - nasceu na Áustria em 1875. Seu primeiro interesse profissional  foi com a eletricidade,  ao completar 18 anos conseguiu emprego na companhia elétrica Bela Egger & Co., em Viena.
 Em 1897, Porsche havia criado um motor para cubo de roda, quando oportunamente deixou se primeiro emprego e foi trabalhar para a Jakob Lohner & Co, um fabricante de carruagens, também de Viena, onde passou a atuar no recém-criado "Departamento de Carro Elétrico". Na nova casa, Porsche desenvolveu um veículo elétrico com um motor em cada cubo de roda, o Lohner-Porsche. Esse carro foi apresentado na Exposição Universal de 1900, em Paris. Variantes desse modelo receberam um motor de combustão Panhard e gerador, resultando no primeiro híbrido do mundo: o Semper Vivus, fato alardeado pela Porsche recentemente no lançamento do novo Panamera Híbrido.

Aos 30 anos, Porsche foi premiado como o  mais destacado, design ou engenheiro (há variações nos textos que lí) automotivo austríaco, prêmio  Poetting de 1905. Na verdade Porsche não era engenheiro de formação, nunca concluiu o curso superior de engenharia, era técnico, apesar de haver frequentado a Universidade de Viena. Mas, seu talento e genialidade lhe daria dois títulos de "Doktor Ingenieur Honoris Causa".

Logo após Porsche receber o prêmio Poetting, foi contratado pela Austro-Daimler. Oportunamente ele trabalhou no desenvolvimento de motores de aviões, caminhões de bombeiros, ônibus, geradores eólicos e até trator agrícola. Porsche também notorizou-se pelo desenvolvimento de veículos e armas bélicas usadas na primeira grande guerra.  Em 1916 foi promovido a algo como diretor-geral da Daimler e nesta fase sua maior notoriedade estava nos carros de corrida que projetava, ganharam muitos prêmios. Em 1923 deixou de trabalhar para o fabricante austríaco. No mesmo ano foi contratado pela Daimler-Motoren-Gesellschaft (DMG), empresa alemã totalmente desvinculada da Austro-Daimler. A Daimler alemã agora tinha, através dos projetos de Porsche,  carros de corridas entre os mais competitivos. Em 1926 a Daimler fundiu-se com a Benz formando a Daimler-Benz. Porsche teve participação nos projetos dos automóveis esportivos Mercedes-Benz com destaque para o SSK. No final de 1928 deixa a Daimler-Benz.

No ano seguinte volta a Áustria para ocupar o cargo de Gerente Técnico da Steyr-Werg AG. Mas, essa sua temporada foi breve, menos de uma ano e meio. Logo que a Steyr se associou a Austro-Daimler, Porsche desligou-se da empresa e em seguida abriu seu próprio escritório de "construção e serviços de consultoria para motores e veículos".

Ainda em 1931, a Porsche patenteou um tipo de suspensão utilizando barra de torção. Alguns autores destacam que a patente era para desenvolvimento de um arranjo específico, não para a utilização genérica da barra de torção, que já havia sido utilizada em outros veículos. Outros escritores, também afirmam que,  pontualmente, essa patente era uma criação de Karl Rabe, na oportunidade ele já trabalhava para a Porsche.

 Nesse mesmo ano, 1931, Porsche foi contratado para desenvolver um carro popular para a Zünddap, tradicional  fabricante de motocicletas. O carro deveria custar, no máximo, 2.000 marcos. Segundo o livro de Schilperoord, o carro deveria ser desenvolvido de acordo com os princípios apregoados por Ganz. O diretor da empresa Fritz Neumeyer definira as linhas gerais em duas páginas contendo especificações técnicas. O autor partidário de Ganz destaca algumas como: Motor traseiro, peso máximo de 600 kg, duas portas com quatro lugares, "adequar-se as últimas tendências e contribuir para as vendas".  O contrato foi firmado no fim setembro. O projeto  recebeu a identificação de "Tipo 12", seguindo o método de identificação adotado no escritório de Porsche.

Paul Schilperoord afirma que Porsche, bem como seu filho Ferry e o seu colaborador Rosembergue não tinham nenhuma experiência com carro leve, motor traseiro e suspensão independente. Os três, logo após validação do contrato e mesmo antes de iniciarem os primeiros esboços do Tipo 12, realizaram testes com o Maikäfer  durante semanas. Fato registrado em fotografia publicada em capa na revista Motor-Kritic quando Ferry Porsche dirigia o Maikäfer.

Registro de capa da Motor-Kritic de novembro de 1931:  Ferry Porsche testa o Maikäfer ao lado de Rosenberg

O Tipo 12, primeira incursão de Porsche rumo ao carro popular, teve três protótipos construídos. Sua concepção mecânica lembrava muito a do Maikäfer, embora fosse maior. A plataforma com espinha dorsal (de tubo central), motor traseiro, suspensão independente e semieixos oscilantes eram ingredientes notórios da receita defendida por Ganz, embora fossem conceitos razoavelmente difundidos individualmente e de autoria conhecida, nenhuma pertencente a Ganz.
Dois tipos de motores radiais foram aplicados, inicialmente um refrigerado a ar com três cilindros que posteriormente foi substituído por outro refrigerado a água com cinco cilindros, por exigência do fabricante.

Type 12 - carroceria aerodinâmica, plataforma com tubo central, suspensão independente e semieixos oscilantes

A Zündapp desistiu do projeto, provavelmente no ano de 1932. Havia muitos problemas no desenvolvimento do carros; motores que  fundiam, pouca estabilidade, estilhaçamento das barras de torção, custo de produção da carroceria - monobloco - muito alto. Por outro lado, a procura por motocicleta aumentou muito e de forma quase repentina. Porsche ficou com um dos protótipos além de receber boa compensação financeira, 85.000 marcos.

Mas, o engenheiro austríaco logo teria uma nova oportunidade de voltar a desenvolver seu carro popular. Em 1933 a NSU, fabricante de motocicletas que também construia carros da Fiat sob licença encomendou projeto de um carro pequeno ao escritório de Porsche. Foram construídos três protótipos muito semelhantes aos do Tipo 12 construídos para a Zündapp. Design aerodinâmico, plataforma, suspensão e a disposição do motor na traseira seguiam o mesmo esquema do Type 12. Entretanto o motor era novo; um boxer de quatro cilindros refrigerado a ar desenvolvido por Josef  Kales com base num motor de dois cilindros opostos projetado por Porsche para uso aeronáutico em 1912.

O Type 32 - protótipo desenvolvido pelo escritório de Porsche para a NSU e que veio a ser o ponto de partida para o projeto do Fusca
Mais uma vez, o desenvolvimento de um carro popular por Porsche foi interrompido. A NSU foi obrigada a desistir da ideia de fabricar um carro de desenvolvimento próprio, ainda em 1933, pois havia um cláusula no contrato com a Fiat que impedia tal empreendimento enquanto fabricasse os carros da empresa italiana.  Porsche ficou com um dos três protótipos desenvolvidos e passou a utilizá-lo em seus deslocamentos cotidianos.

Mas, em pouco tempo, Porsche conseguiria um novo patrocinador para seu projeto de carro popular, um cliente muito mais decidido e também e poderoso. Hitler, já a frente do governo nacional-socialista, estava querendo construir uma fábrica estatal de carros populares na Alemanha afim de reanimar a economia da arrasada Alemanha e, de alguma forma, foi convencido que Porsche deveria ser o projetista. Existem algumas versões sobre reuniões que entre os dois a respeito do conceito de carro popular que deveria ser construído. Em uma delas, acontecida no Hotel Kaiserhof, Hitler teria reportado a Porsche a descrição em linhas gerais de como deveria ser o Carro do Povo alemão: um carro para uma família com até três crianças, motor refrigerado a ar, que fosse econômico, fácil de construir e não custasse mais que 1.000 marcos. Paul Schilperoord afirma, em seu livro, que Hitler chegou a apresentar alguns esboços a Porsche durante a reunião.

Certo é que em junho de 1934 o escritório de Porsche firmou contrato com o Ministério dos Transportes, sob orientação da RDA - associação de fabricantes de veículos automotores da Alemanha, para desenvolvimento do carro popular do povo alemão. O contrato garantiu a Porsche amplos recursos para desenvolvimento do carro e da linha de produção. Não foi uma jornada fácil, pelo contrário, os prazos eram muito curtos e o abono não era dos mais fartos, mas, os recursos para o desenvolvimento eram vultuosos, afinal Hitler estava obstinado a construir uma fabrica nada modesta. Sua intenção era motorizar a Alemanha, que no tempo contava com a relação de apenas um carro para cada cem habitantes enquanto nos Estados Unidos a mesma relação era de um carro para cada seis americanos. A ideia do ditador era construir uma fábrica que pudesse atingir a produção de até 1,5 milhão de veículos por ano em sua plenitude, prevista para o fim da primeira década de produção.
V2 - um dos dois primeiros protótipos construídos pela equipe de Porsche, finalizados em outubro de 1935 - Fonte: Pre67VW
Os prazos para apresentação do primeiro protótipo eram curtos e a equipe de Porsche resolveu que o  ponto de partida do projeto deveria ser o Type 32, desenvolvido durante o contrato com a NSU e que por sua vez já se tratava de uma evolução dos conceitos e experiência adquirida durante o desenvolvimento dos protótipos Type 12, desenvolvidos para a Zündapp.  Decisão que se mostrou bastante racional e acertada, pois, os conceitos aerodinâmico, de chassi central e suspensão por barras de torção foram mantidos e incorporadas no veículo de produção com poucas alterações em relação ao Type 32.  Uma das mudanças é que a carroceria agora não era monobloco, mas suportada por uma  plataforma plana . Diversos autores afirmam que tal configuração foi adotada para atender uma exigência de Hitler de que o carro pudesse vir a ter uso bélico.

A maior indefinição, assim como nos protótipos desenvolvidos nos dois empreendimentos fracassados, continuava a ser quanto a motorização. Diversos motores foram desenvolvidos. As configurações empregadas abrangiam ciclos de dois e quatro tempos; disposição de cilindros em radial, opostos e em linha; refrigeração a ar e a água; blocos de dois, três e quatro cilindros.
Por fim, após longos testes e muitos protótipos ensaiados, o motor adotado foi o desenvolvido por Franz Reimspiess e que  obedecia a configuração do motor projetado por Josef  Kales para o Type 32, boxer de quatro cilindros refrigerado a ar. Pois, apesar de mais caro, esse foi o motor que melhor atendeu os requisitos de economia, robustez, desempenho e confiabilidade.

Motor de duplos cilindros, ciclo de dois tempos - um dos diversos modelos desenvolvidos para teste nos protótipos - Fonte: flat4.org
Os recursos financeiros e suporte de produção dos protótipos pela Daimler-Benz garantiam um suporte bastante sólido e infinitamente superior ao que Porsche e sua equipe havia desfrutado nos empreendimentos anteriores.    Entretanto as exigências para o desenvolvimento do Carro do Povo Alemão eram enormes, a ponto da larga experiência e reconhecida genialidade de Porsche e sua equipe não ser o bastante. Durante os, pelo menos, quatro anos de desenvolvimento que antecederam a produção em série do Volkswagen, Porsche e seus engenheiros recorreram ao conhecimento de  empresas americanas como a Ford, onde puderam conhecer de perto as linhas e métodos de produção em série, e a Air-Cooled Motors Corporation, que ajudou a solucionar problemas crônicos ligados a refrigeração do motor adotado, o boxer de quatro cilindros desenvolvido por Franz Reimspiess.

Apesar de todos os problemas surgidos no desenvolvimento do Volkswagen, não houve grandes reformulações no projeto original de Porsche. As dificuldades enfrentadas por Porsche e sua equipe, deveu-se, em grande parte, ao  típico refinamento necessário para se transformar um projeto em produto, somados a rígida exigência de um limite para o custo de produção, imposta por Hitler.
A concepção original de Porsche para um carro do povo  pode ser identificada tanto no Type 12 como nos veículos saídos das linhas de produção.  O sucesso do Fusca ainda impressiona. Sua concepção era incomum nos carros de produção por trazer diversos conceitos poucos usuais, o que provocou  muito estranhamento no início. Seus conceitos não se tornaram padrão e, apesar de bastante adotados pela concorrência. E quando arquitetados por outras mãos nunca resultaram em um carro de grande sucesso. De uma forma figurativa, podemos dizer que, assim como a Coca-Cola, a receita de Porsche teve seus ingredientes bastante copiados, mas sua essência nunca foi alcançada. Coisa de gênio.


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Adolf Hitler - Diversos autores afirmam que Hitler foi quem passou diretamente a Porsche os requisitos para o desenvolvimento do Carro Popular que ele vislumbrava para a Alemanha, inclusive tendo mostrados diversos esboços na oportunidade em que os dois sentaram-se para conversar sobre o assunto. Entretanto, ao que consta a construção do Type 12 é anterior aos supostos encontros e, por outro lado,  não há como negar que o Fusca é uma evolução do Type 12, a configuração geral é mesma em todos aspectos. Essa associação demonstra que os conceitos esboçados por Hitler para o Volkswagen não foi o que direcionou o trabalho de Porsche. O que não quer dizer que a afirmação de que Hitler concebeu e repassou a Porsche requisitos e esboços para sua encomenda seja falsa. Já que há a possibilidade de que os dois tenham desenvolvido propostas semelhantes. E há uma terceira afirmação que fortalece essa hipótese; a de que Josef Ganz tenha influenciado os dois em suas concepções de como deveria ser o Carro Popular Alemão, através de suas ideias, publicadas em Motor-Kritik e materializadas no Maikäfer.

Por outro lado, não há dúvidas da importância do tirano alemão na viabilização do Fusca. O esforço e, sobretudo, o custo financeiro consumido no desenvolvimento do Fusca, bem como os fracos resultados obtidos por Porsche nos dois empreendimentos anteriores para desenvolvimento de carro popular nos dá a quase certeza de que sem Hitler o Fusca nunca teria alcançado o sucesso obtido.

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Nomes do Volkswagen Sedan (nosso Fusca) em alguns países
Alemanha - Käfer
Bélgica - Cocinnelle / Kevver
Brasil - Fusca / Sedan
Bolívia - Peta
Chile - Escarabacho
Dinamarca - Boblen
EUA - Beetle / Bug
Finlândia - Kuplavolkkari
Grécia - Scaraveos
Holanda - Kever
Itália - Maggiolino
Japão - Kabuto-muchi
Lituânia - Vabalas
Malásia - Kura
México - Vocho
Noruega - Boble
Portugal - Carocha
Quênia - Kifuu
Russia - Zhuk
Suécia - Folka
Tailândia - Volk Tao
Vietnã - Con bo
Zimbabwe - Bhamba Dathya in Shona


Leituras que me  levaram a escrever este post

1) Livro "A Verdadeira História do Fusca - como Hitler se apropriou da invenção de um gênio judeu" (tradução em português); autor Paul Schilperoord; Editora Alaúde.

2) Livro "Fusca - O Carro mais popular do Mundo"; autor Richard Copping; Editora Alaúde.

3) Livro "Porsche - O homem, o mito, o carro"; autor Paulo César  Sander; Editora Alaúde.

4) Livro "Fusca (Série Clássicos do Brasil) "; autor Paulo César  Sander; Editora Alaúde. 

5) Livro "DKW - A grande história da pequena maravilha"; autor Paulo César  Sander &  Rogério de Simone; Editora Alaúde.

6) Livro "Uma História das Invenções Mecânicas"; autor Abbott Payson Usher; Editora Papirus

Fontes das imagens

Foto de abertura em: http://www.flickr.com/photos/30405858@N05/6176009134/

2 comentários:

  1. De fato, é um veículo com uma história fascinante que sobreviveu a guerras e ao próprio tempo e espaço.

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  2. Pensa num tema polêmico...

    De fato, algumas idéias defendidas por Josef Ganz e que possam eventualmente ter sido influenciadas pela experiência de sucesso da Tatra também se estenderam ao Fusca, mas daí a dizer que houve algum plágio me parece muito sensacionalismo.

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